A história não é de fácil assimilação: a morte da médica Ciane de OlIveira Mackert, ex-companheira do músico paraense Alcyr Guimarães, que foi encarada por muitos anos como uma tragédia súbita, pode se revelar um homicídio qualificado por envenenamento, com um cenário de abusos, violência psicológica e sofrimento. Alcyr foi indiciado pela Polícia Civil do Pará por homicídio e furto qualificados. Agora, a família de Ciane busca que a Justiça esclareça e alcance a história da mulher.
Ciane morreu no dia 28 de março de 2015, entre as 22h e as 23h, em um apartamento localizado na travessa Curuzu, entre as avenidas Almirante Barroso e João Paulo II. No local, ela morava com o músico Alcyr Guimarães e dois filhos dela, menores de idade.
Na época, o músico declarou que a companheira havia tido um mal súbito enquanto tinha ido ao banheiro. Ele estaria no quarto quando notou a demora da mulher e a encontrou desfalecida, sentada no vaso sanitário.
Uma médica pediatra, prima de Ciane, que foi chamada por Alcyr e pelo filha da vítima, atestou que a mulher tinha morrido em decorrência de um infarto agudo do miorcárdio, aterosclose da artéria coronária e diabetes mellitus.
Uma irmã de Ciane pediu para que fosse feito exame de necropsia no Instituto Médico Legal (IML), por duvidar do laudo, mas parentes da falecida e o próprio Alcyr teriam dito que isso era desnecessário.
A morte foi encarada, por muitos anos, como uma tragédia. Essa abordagem, no entanto, mudou completamente no ano passado com o aprofundamento das investigações.
RELAÇÃO CONTURBADA E DENÚNCIAS DE VIOLÊNCIA
Os diversos relatos ouvidos pela Polícia Civil do Pará, inclusive do próprio Alcyr Guimarães, apontam que ele e Ciane começaram a se relacionar em 2011. Na época, o músico estava em outro relacionamento, no qual a ex-companheira de Alcyr entrou com pedido de medidas protetivas por ameaças. A mulher, que viveu com o artista por 23 anos, afirma que foi agredida repetidas vezes.
Ele teria começado a se relacionar com Ciane, segundo relatos colhidos, quando ela ainda era casada com um médico cirurgião em Curitiba, no Paraná. O homem era pai dos dois filhos dela.
Em 2011, o médico faleceu, supostamente, de um infarto agudo do miocárdio. A médica, então, se mudou para Belém e começou a namorar com Alcyr. Após um curto período na casa dos pais dela, Ciane comprou um apartamento (o mesmo onde ocorreu a morte) com a ajuda do pai, e se mudou com os filhos, com uma irmã e, posteriormente, com o músico.
Alcyr declarava sempre que a relação deles era estável e feliz. Os depoimentos colhidos pela polícia, no entanto, contradizem a versão: segundo as pessoas próximas, Ciane mudou completamente, tornando-se introvertida, isolada e distante da família. A aparência dela teria mudado e ela aparentava “total submissão” ao músico, de acordo com os relatos.
A médica proibiu a entrada dos pais no prédio, afastou-se dos irmãos (a irmã que morava com eles saiu de casa) e pessoas que trabalharam na apartamento afirmam que eram proibidas de relatar as brigas e agressões verbais intensas que marcavam a rotina do casal.
Não poucas vezes, pessoas próximas viam marcas roxas pelos braços e pernas de Ciane. Ela geralmente dizia que eram frutos de quedas. Os filhos dela se afastaram dos avós. Os amigos e parentes desconfiavam da situação, mas a mulher negava qualquer anomalia.
REVIRAVOLTA
A desconfiança sobre a morte de Ciane começou com o relato de um dos socorristas que atenderam a ocorrência no dia 28 de março: o servidor do Samu atestou que o nível de glicose da mulher era normal, o que contradizia a versão de um quadro desencadeado por diabetes mellitus.
A Justiça aceitou, então, um pedido de familiares para exumar o corpo de Ciane. Após anos de investigações e troca de delegados responsáveis pelo caso, um laudo realizado pelo Instituto Médico Legal de São Paulo, no início de 2019, decretou a reviravolta na história: foram encontrados, quase quatro anos após a morte, resquícios de Meperidina, Sibutramina e Carbofuram no estômago de Ciane, e Merepidina e Carbofuram na bexiga dela.
Merepidina é uma droga altamente perigosa, mas foi a presença de Carbofuram que definiu o caso para a polícia. Ela não é um remédio, e sim um tipo de substância altamente tóxica proibida no Brasil, usada para matar pragas.
O “Carbofuram não é de uso médico e tampouco de fácil acesso, razão pela qual não poderia estar presente no corpo da vítima, senão com intuito letal”, sentenciou o inquérito policial.
O laudo conclui, ainda, que a quantidade das substâncias deveria ser muito alta para, após quatro anos do óbito, terem sido detectadas pela exumação.
“Assim também que o primeiro laudo atesta que havia focos de hemorragia por todos os órgãos da falecida, levando a conclusão de que foi injetado grande quantidade de droga no corpo da vítima”.
FURTO QUALIFICADO E RETIRADA DE BENS DOS FILHOS
Além de homicídio qualificado, Alcyr Guimarães responde por furto qualificado. Após a morte de Ciane, ele é acusado de sacar todo o dinheiro existente na poupança dos filhos da médica, quando esses já tinham ido morar com os avós maternos.
O músico ainda é acusado de receber, por cerca de três meses, sozinho, uma pensão por morte do Instituto Nacional de Seguridade Social (INSS), sem ter declarado que a mulher tinha filhos. Depois, é que a pensão começou a ser rateada com os filhos de Ciane.
Nos depoimentos, Alcyr alegou que tinha sacado o dinheiro para “quitar uma dívida” da médica e que teria devolvido a quantia.
Parentes de Ciane também questionam o fato de a mulher ter colocado Alcyr como usufrutuário do apartamento de Belém, o que dava a ele, por exemplo, o direito de alugar o imóvel, e de ter passado para ele a posse de um veículo de luxo.
Por fim, e-mails reunidos nos autos mostram que Alcyr tentou gerenciar os aluguéis de imóveis que o ex-marido de Ciane tinha deixado para ela e para os filhos, na cidade de Curitiba.
"Após analisar todos os depoimentos e provas materiais, concluiu-se que Alcir agiu de caso pensado. Tinha um grande trunfo nas mãos, qual seja, a morte de Wanderley em Curitiba, esposo de Ciane. Várias testemunhas afirmam ter ouvido Alcir acusar Ciane pela morte do marido, ficando claro que Ciane estava vivendo sob intensa pressão por parte de Alcir. Verifica-se que antes de sua morte, Ciane o colocou como usufrutuário do imóvel onde residiam. Obrigou-a a passar seu carro da marca Corolla para o nome dela. Ele a obrigava a piores coisas", relata o texto do indiciamento.
"Após o óbito, tentou adquirir a guarda dos filhos de Ciane para administrar o patrimônio deixado pelo pai deles. Também por um período recebeu os aluguéis que vinham de Curitiba, os quais eram de propriedade dos menores. Furtou numerários das contas poupanças das crianças e depois das contas de Ciane. Culpou [nome preservado] da morte da mãe, causando-lhe intenso sofrimento, com fins de manipulá-lo a dizer coisas em seu favor", conclui o inquérito policial.
Pelas denúncias, Alcyr Guimarães responde por furto qualificado. Ele não compareceu, por estar internado em unidade de saúde, a uma audiência marcada para esta sexta-feira (6) em que responderia pela acusação de furto.
Fonte: Diário Online