Quando se descobre um câncer...
Uma mistura intensa de sentimentos para administrar ou, simplesmente encarar e seguir adiante. Uma sensação muitas vezes de impotência, de escuro, de incertezas, medo. Foi assim que me senti...Falo em primeira pessoa, por ter recebido em 2012, o diagnóstico de câncer de mama, aos 37 anos de idade, quatro filhos, entre eles gêmeos, não tinham dois anos de idade, ainda. Meus filhos eram tão pequenos...Uma vida pela frente, muitos projetos, na época! Tive que deixar minha casa, o trabalho, os projetos, meus filhos, a família e seguir numa jornada desconhecida. Levava na bagagem a oração, a força, a amizade e a família unida. O que enchia a mala de esperança...
Esse apoio imenso e duradouro foi decisivo para a qualidade do meu tratamento. O apoio e o acolhimento, em sete casas de amigos e, pessoas que eu conheci ao longo da jornada foram sem dúvida, o marco inicial dessa história de acolhimento que temos na Casa Rosa – Casa de Apoio à Mulher com Câncer.
A partir daí, o acolher, o orar, o esperar, nasce o Grupo de Amigos do Peito - um grupo pequeno de mulheres e homens, todos amigos, que me acolhiam, que me ajudavam a atravessar essa jornada, e deixá-la mais leve. Desde ficar com meus filhos à acompanhar consultas e cirurgias. O grupo de amigos, que denominamos “Amigos do Peito” foi crescendo e promovendo outros encontros, outros apoios, outros acolhimentos. O acolher o outro e em especial, aqui a outra, a mulher que recebia assim como eu, a notícia que tinha câncer. E para onde ir ? Por onde começar ? Onde ficar ? Como acolher essa mulher que chega de um lugar distante, deixa sua casa, sua família, deixa tudo para trás, que não tem um amigo, um lugar para ficar, uma palavra acolhedora e animadora, um porto seguro, um ombro amigo...Como seguir em frente...
Mulheres que mal sabem da sua doença, que recebem de qualquer jeito o diagnóstico, nunca saíram de casa, nunca deixaram seus filhos, sua casa, sua comunidade, sua cidade, sua gente...Mulheres que precisam não só de ajuda clínica, mas em especial de ajuda emocional, psicosocial...Quando o cabelo cai; quando a dor chega; quando o amanhã parece incerto; quando chega a retirada da mama, ou das mamas...quando os homens com quem vivem as abandonam, os filhos, os vizinhos, a sociedade, quando seus direitos são negligenciados ou deixados de lado, quando essa mulher se ver sozinha....É quando nasce a solidariedade, o peito amigo, o acolhimento, a escuta , o alimento, a esperança de que existe vitória, uma jornada mais leve, colorida e recomeços.
Assim, o Grupo de Amigos, envolvido por esse sentimento, cria legalmente a Associação Amigos do Peito, e aluga um imóvel, fundando a Casa de Apoio à Mulher com Câncer – Casa Rosa – para acolher, alimentar e dar um lugar digno para tornar mais leve essa jornada longa e por vezes, infelizmente, curta – mais que uma simples hospedagem, um lugar de apoio emocional e social.
Alugamos uma casa bem próxima do Hospital Regional do Baixo Amazona, onde se faz tratamento oncológico, em Santarém, no oeste do Pará. Recordo da primeira paciente, Maria de Fátima, quando a alegria tomou conta da gente por saber que iríamos começar a acolher. Não víamos a hora de conhecê-la. Ela estava em uma casa em Santarém, e não conhecia ninguém na cidade, estava vindo de Altamira, também no interior do Pará. Quando ela fez o contato por telefone, sabíamos que nossa história de acolhimento começava ali...Maria de Fátima, estava sentada no banco de espera, no hospital, com lencinho na cabeça, um olhar de curiosidade, porque também não nos conhecia, não sabia direito quem éramos nós....Eu, Edna Assunção e Eugênia....três amigas do peito, em busca de Maria de Fátima, que recentemente havia recebido diagnóstico de câncer de mama e infelizmente, em sua cidade não havia todo o tratamento. Ela estava ansiosa, com medo...Lembro que ela nos disse: “pensei que não viessem...” Era medo de não irmos, de termos desistido dela, de não a acolhermos mais...e para onde ela iria...ela não tinha mais para onde ir, iria ficar naquele banco, por muitas horas...Mas estávamos lá, me emociono ao escrever, lembrando do nosso abraço, do nosso jeito tão íntimo, como se já a conhecêssemos. Era a grande vontade de ajudar, de acolher e dizer....Nós estamos aqui, você não está mais sozinha! Era o que ouvi durante muitos anos....eu teria que dizer também....E minhas amigas do peito Edna Assunção e Eugênia...desde aquele dia, não pararam mais de acolher...
E Maria de Fátima ?!!! Ah, ela era a nossa primeira acolhida, a primogênita e a mais teimosa (risos). Seus olhos claros, seu jeito alegre e barulhento, por volta de seus 40 anos...nos ensinou tanto, nos ensinou a organizar uma casa de apoio...Mudou nossa rotina várias vezes, fez de muitos voluntários, mais fortes e decididos a continuar a acolher. Um olhar forte de uma mulher que deixou em sua cidade sua família de sangue e construiu uma outra. Foi forte na batalha, até que se despediu...deixando uma grande lição – não desista, não murmure, fé! E continuem, porque a casa precisa acolher outras tantas Marias de Fátima...
Assim, fomos entendendo que as despedidas seriam inevitáveis, que teríamos que atravessá-las. Mas, muitas chegadas e partidas de volta para casa, curadas, também fariam parte dessa jornada. Isso nos animava e nos anima, a força de cada mulher acolhida e de cada voluntário e voluntário, que se dedicava e ainda se dedicam, como a Juscilene, Rosilda, Izaildes, mesmo pacientes em tratamento oncológico, se dedicavam ao acolhimento. E assim, foi crescendo a vontade de acolher, com voluntários especiais que começaram essa história e outros que até hoje estão como voluntárias e já fazem parte da diretoria. Voluntários que deixam por horas suas casas e vão cuidar de outra casa, e de mulheres, que se tornam parte de suas vidas.
Uma voluntária dedicada e que nos ensina muito sobre o acolhimento, Edna Assunção de Jesus, também uma das fundadoras da Associação Amigos do Peito, diz que a criação da Casa é uma parte de sua vida. “ A Casa Rosa é uma parte de minha vida, vivida nos meus 63 de existência. Participei de muitas lutas e vitórias concretas, entre essas, o sonho que se tornou real - a CASA ROSA, que acolhe as mulheres em momentos tão delicados. Já faz parte de minha família, é como se fosse uma filha que acompanhei a gestação, o nascimento, o crescimento e o desenvolvimento. Eu me sinto como você, Leíria, como você sempre conta, no momento que chegou perto de seu médico e ele lhe deu aquele abraço. Assim, eu fico feliz com as mulheres que chegam na casa, não pela dor, mas em poder acolher e ajudar, às vezes elas não conhecem ninguém na cidade. Eu gosto de dar aquele abraço e digo: seja bem vinda, a senhora está na casa rosa, esse abraço é para lhe dizer que você não está sozinha!. Todas nós, diretores, voluntários e parceiros, estamos juntos! Nessa hora, eu vejo como é importante se ter onde e como acolher. Eu me sinto privilegiada, em fazer parte desta missão, Casa Rosa, que acolhe com amor”.
Fundada por um grupo de amigos, em 2016, a Casa Rosa já acolheu mais de cem mulheres, entre pacientes e acompanhantes. A Assistente Social, Adelaine Siqueira de Jesus, voluntária e, atualmente está como presidente da Associação Amigos do Peito, diz que a casa tem sido um espaço de acolhimento e dignidade. “Nossa missão é acolher com amor, mulheres em tratamento oncológico, porém, o ato de acolher vai muito mais além de um simples hospedar ou de uma simples missão, pois nos revela o quanto a casa Rosa é importante para muitas mulheres, que não tinham noção do que seria fazer um tratamento em uma outra cidade, longe da sua família e da sua casa. Mas, além da experiência dessas mulheres em ser acolhidas em uma casa "diferenciada", existe a experiência de todos os organizadores, os técnicos, os coordenadores, a direção, pois doam seu tempo para acolher pessoas que nunca tinha visto, com diversas personalidades, perfil econômico, social, cultural e emocional. Ou seja, acolher na casa Rosa é um ato de amor constante e, passos para o exercício da dignidade, com um tratamento cada vez mais igualitário. A busca da cura, envolvendo aspectos físicos, emocional e social”.
Acolher sem dúvida, mais que um gesto, é amor, dedicação e cuidado. Flávia Reis conta como foi a sua chegada à Casa Rosa – acompanhando sua mãe, Dona Judith Bianchi Reis, do município de Anapú, acolhida pela Casa Rosa, durante o seu tratamento oncológico, um ano e quatro meses:
“A minha chegada e da minha mãe na casa rosa foi com muita expectativa e ansiedade, nós nunca imaginávamos que seríamos tão bem recebidas, com carinho e atenção. Minha mãe e eu, sempre seremos gratas por todo apoio amor e carinho que a casa rosa nos acolheu. Minha mãe se sentia em casa. Sou grata por tudo, agradeço por mim e minha mãe. Não conhecia Santarém e não tinha parentes ou amigos. Graças à Deus, conhecemos a casa rosa e tínhamos tudo que a gente precisava, amor carinho, apoio e alimentação, etc. resumindo, a casa rosa é uma benção de Deus nas vidas das mulheres com câncer”.
Para a voluntária Elma Vasconcelos, também uma das diretoras, o acolhimento é doação. “Sou voluntária por amor, por empatia e me faz muito feliz, ajudar minhas irmãs/mulheres a passar por esse momento tão delicado. Ser voluntária não é trabalho, não tem dia de folga e nem férias. Mas, tem um retorno maravilhoso. Me faz muito bem, imagine a quem recebe ajuda. Faça essa experiência, é gratificante servir ao próximo!”. Disse Elma, emocionada.
Foram muitos desafios até agora...Manter a Casa Rosa aberta, sair do aluguel e ter a tão sonhada casa própria, somente assim espera-se reduzir os gastos. Desde a criação da casa, a ajuda dos que correm e caminham na tradicional corrida e caminhada contra o câncer, promovida por uma clínica médica de Santarém, coordenada pelo médico e um dos diretores fundadores da Casa Rosa, Bruno Moura, foi fundamental. Mas, com a pandemia, não aconteceu em 2020, o que dificultou muitas coisas. Ações externas pararam e outras emergenciais tiveram que ser tomadas e, com o empenho de voluntários, amigos parceiros, associados, está sendo possível manter a Casa Rosa, com algumas limitações. A Casa Rosa desde o seu início, se mantém com doações de parceiros, amigos, voluntários e associados. Parceiros locais, como empresas e outros pequenos estabelecimentos comerciais. Ajuda essencial para manter o estoque de alimentação, para as acolhidas e acompanhantes. Alguns pequenos projetos externos, também foram conseguidos para dar apoio em algumas ações necessárias da Casa, como oficinas de rede, perucas, artesanato e alternativas de lazer que contribuam para a autoestima e qualidade de vida das acolhidas.
Assim como sonhamos no início, continuamos sonhando e buscando alternativas para manter o acolhimento, espalhando alegria e amor. Mostrando que é possível vencer o câncer com mais leveza, desde que se tenham políticas públicas e vontade de diversos setores para minimizar essa jornada, que como muito se falou, merece atenção e cuidados.
E os sonhos precisam continuar...assim como a alegria de estar nessa jornada, de estar viva, de ter voltado para casa e superado com o apoio da minha família, médicos, enfermeiros, e muitos amigos do peito, cujo apoio foi fundamental e extremamente necessário. Sem essa rede de apoio, seria muito difícil seguir sozinha...Foi sem dúvida, onde nasceu essa grande história de amor, superação, solidariedade e acolhimento, compromisso com a vida das mulheres da nossa Amazônia. São muitas, que chegam atravessando rios, cortando estradas, ramais, de lugares longínquos, em busca de cura e com a imensa vontade de tudo acabar e voltar para casa.
Uma vida longa para a Casa Rosa, somente assim saberemos que muitas mulheres também terão uma vida longa e com mais dignidade! Conheça, ajude!!!
* Por: Leíria Rodrigues – Graduada em Letras, Especialista em Comunicação Social e Jornalismo, diagnosticada com câncer de mama, duas vezes, e câncer de útero. Uma das fundadoras da Associação Amigos do Peito – Casa Rosa.
Fonte: Portal Santarém